segunda-feira, setembro 29, 2003

Abismo

A sala está encerrada numa penumbra pesada, quase negra. A televisão debita imagens que me parecem um caleidoscópio de cores, caras, objectos. O azul predomina enquanto um miúdo de camisola amarela passa rapidamente numa bicicleta maior do que ele. Um homem de barba cospe-me palavras que não entendo, numa canção cuja harmonia me escapa.
Encho novamente o copo e bebo o seu conteúdo de um trago. Um calor violento inunda-me o peito, queima-me até às entranhas que não sabia ter. Tusso, frenético, enquanto tento encher novo copo. Bebo o segundo mais pausadamente. O ardor é agora mais consciente. Sinto-o descer pela garganta e atingir, explodindo, o estômago quase vazio. Os meus olhos turvam-se. As cores misturam-se de forma aleatória. Não compreendo já o azul nem o amarelo. Tudo é uma paleta de cores que parece rodopiar velozmente.
O cintilar da televisão sobressai agora mais na sala escura. O negro parece mais negro e o ar está mais pesado. Pequenas gotas de suor perlam-me a testa, o pescoço, as costas. De um arranco agarro na garrafa ainda uma vez. O líquido viscoso e amarelo chama-me, sereia maldita que me atrai para o abismo. 'Não quero resistir, não quero'. Sinto o corpo rodopiar num frenesim demente. Ouço vozes aqui e ali. Chamam-me umas, riem-se outras, outras ainda falam linguas que não compreendo, atiram-me com palavras que não fazem sentido.
Cores. Tantas cores. Milhares de cores que se misturam para logo se separarem. O abismo é ali. Toda a tensão desapareceu. Apenas a sensação interminável da queda sem fim, sem dor, sem ansiedade.
Abro os olhos. A televisão continua a atirar-me com imagens coloridas que não compreendo. O copo está vazio. Afinal não há sereias.
AR

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