sexta-feira, novembro 14, 2003

Ainda as Paredes de Vidro

Ana Rita Guerra teve a amabilidade de nos enviar um email tecendo alguns comentários ao post sobre Álvaro Cunhal, que se encontra um pouco mais abaixo. Reproduzo aqui, com a devida autorização, uma parte desse email.
"[...]Considerar que a democracia em Portugal aconteceu "apesar" de Álvaro Cunhal é algo que me deixa não intrigada, mas estupefacta. [...]" E, indicando a sua identificação com os valores da esquerda, faz referência a colegas de direita que teciam comentários sobre as suas opções políticas e o eventual ataque à  liberdade levada a cabo pelos comunistas: "[...] Pessoas que me chateavam por causa da tal liberdade não admitiam que eu fosse de esquerda.E depois os 48 anos de ditadura foram um pequeno lapso, o apoio dos EUA a Israel é um erro infeliz, a Coreia não representa perigo nenhum, a Arábia Saudita é uma democracia, e lá lá lá. Com todos os erros que foram cometidos no PREC, com todos os excessos de Cunhal, parece-lhe verosí­mil subtraí-lo da luta contra a imitação de fascismo em Portugal? A sério que sim?
A propósito, gostaria de referir o seguinte. Quanto aos colegas de Direita a que faz referência, deixe-me dizer-lhe que me solidarizo completamente consigo. Infelizmente, existe uma direita atrasada e estúpida (admito mesmo que seja a maior parte dela) que, pugnando pela Liberdade, teima em a recusar aos que pensam de maneira diferente. Contra isso, apenas temos como arma o debate livre e informado. Porque não há extremismos, seja de que côr forem, que consigam sobreviver a uma discussão e análise informadas.
Gostaria de lhe dizer, também, que o apoio dos EUA a Israel não é um erro infeliz, antes resulta de uma polí­tica de projecção de poder e de controlo e influência que as sucessivas administrações norte-americanas têm como a melhor polí­tica a seguir em defesa dos seus próprios interesses. Não concordo com ela. E embora também não nutra nenhuma simpatia por Arafat e a política que tem seguido, considero que se vivessemos tempos normais alguns dos actuais líderes israelitas teriam já sido alvo de acusações por crimes contra a Humanidade. A Arábia Saudita não é, seguramente, uma democracia e o perigo que as Coreias colocam uma à  outra é (muito) relativo. Finalmente, ainda nesta linha que enunciou, os 48 anos de ditadura em Portugal não foram, evidentemente, um pequeno lapso mas uma desgraçaa cujas consequências ainda hoje sofremos. Como vê, cara Ana, concordamos em alguma coisa.
Mas não concordamos quanto a Cunhal e ao PCP. E vou-lhe explicar porque é que escrevi o que escrevi. Essencialmente, porque não consigo dissociar Cunhal de um conjunto de memórias do final da minha infância e do iní­cio da minha juventude/adolescência. Sabe, é que os meus pais, que eram funcionários públicos (ele, Engº no então Ministério das Obras Públicas, ela, Professora Primária), tiveram que correr tudo quanto era comí­cio do PCP, UDP, MES, MRPP e por aí­ fora, para serem vistos, de forma a não perderem os empregos com os famigerados saneamentos, frequentes na época e que atingiam todos os que não partilhavam do fervor revolucionário da época. Sabe, é que o programa do Vasco Granja, o Cinema de Animação, deixou de passar desenhos animados ocidentais para passar apenas dos Países de Leste (que más eram aquelas animações húngaras, checas e polacas!) e, esporadicamente, chineses (sempre animação de sombras, se alguém se recorda). Porque Vasco Gonçalves disse em Almada que não havia uma terceira via: ou se estava com a revolução (no caso o PCP e a extrema-esquerda) ou contra a revolução. Porque com sete ou oito anos tinha que estar na fila da leitaria para arranjar 1/2 litro de leite (e a minha mãe, que fingia não o ser, ficava normalmente uns lugares mais à frente para ficar com outro 1/2 litro), porque eramos 4 pessoas em casa das quais duas crianças pequenas. Porque tinha que estar na fila do pão. Porque no Liceu, tive que lutar, mesmo fisicamente (imagine só, com a minha triste figura), porque uma lista afecta à JCP ganhou umas eleições e, com a conivência do Conselho Directivo, quase na totalidade composto por comunistas, não queria fazer outras no ano seguinte.
Podia estar aqui o dia todo a dar-lhe exemplos das minhas memórias. Para mim, Cunhal e estas memórias são perfeitamente indissociáveis. A Ana chamou a isto excessos do PREC. Eu, pelo meu lado, acho que isto era o que nos esperava.
Concordo consigo quando diz que não devemos (podemos) subtraír Cunhal da luta contra o fascismo. Mas a nossa divergência está em que entende que Cunhal lutou contra o Fascismo pela Democracia e eu entendo que Cunhal lutou contra o Fascismo pelo Comunismo. E é no nosso entendimento do comunismo que reside toda a diferença.
Mas deixe-me agradecer-lhe pela oportunidade que nos deu de discutirmos aqui (os três) este assunto, que me aparece importante e, apesar dos ventos tão falhos de convicções ideológicas que sopram, sempre actual, e pedir-lhe que aceite, cara Ana, os protestos da minha mais elevada consideração.
AR

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