quinta-feira, janeiro 22, 2004

mais Houellebecq

Em 1998 Michel Houellebecq publica o seu mais perturbador romance, «As Partículas Elementares» (publicado em Portugal pela Temas & Debates), tido por muitos críticos e leitores como o melhor romance dos anos 90 e o início do século XXI da literatura.
Romance com ideias, mais que mensagens ou respostas, «As Partículas Elementares» é uma obra corrosiva de onde nada sai incólume: as utopias pseudolibertárias que conduziram ao individualismo egoísta dos nossos dias, o vazio da cultura, da estética, da política, das relações sociais. Houellebecq constrói neste livro cenários nos quais a humanidade aparece despida, cruamente tratada e exposta em todas as suas contradições e hipocrisias. Dono de um texto límpido, cortante, directo, ignora os floreios e os barroquismos, e prima pelo choque frontal e impiedoso. É certo que, por vezes, o discurso científico, as descrições minuciosas e a exposição didáctica, inseridos na narrativa, dissecam as acções dos personagens, contextualizam ao exagero a historicidade da acção. Mas esses elementos textuais, aparentemente estranhos ao estilo romanesco, têm o efeito semelhante à decomposição de um cadáver - um espelho sarcástico.
«Uma vida humana pode ser descrita em dez palavras ou em dez mil, conforme se queira. A escola metafísica ou trágica, que se limita em última análise às datas de nascimento e de morte, classicamente inscritas na lápide funerária, é recomendável por ser extremamente breve. No caso de Martin Ceccaldi será oportuno mencionar uma dimensão histórica e social menos centrada sobre as características pessoais do indivíduo do que sobre a evolução da sociedade, da qual ele é um elemento sintomático. Arrastados pela evolução geral da sociedade a que pertencem, e nela participando de bom grado, os indivíduos sintomáticos têm de forma geral uma existência simples e feliz».
(...)
«Os filhos representavam a transmissão de uma condição, de regras e de um património. Era evidente o que acontecia nas classes feudais, mais igualmente com os comerciantes, camponeses, artesãos, de forma geral com todos os grupos da sociedade. Hoje, nada disso existe. As pessoas são assalariadas, locatárias, não têm nada para deixar aos filhos. Não têm nada para lhes ensinar, nem sequer sabem o que eles poderão vir a fazer; as regras que conheceram não serão de todo aplicáveis a eles, porque eles viverão num mundo completamente diferente. Aceitar a ideologia da mudança permanente significa aceitar que a vida de um homem está reduzida estritamente à existência individual e que as gerações passadas e futuras não têm, aos seus olhos, nenhuma importância. É assim que nós vivemos, e ter um filho, hoje, para um homem, já não faz qualquer sentido».
A literatura não se contrapõe à vida, Tomás. É uma boa parte dela. Uma das melhores.*
CC
There's more to life than books, you know. But not much more». The Smiths, Handsome Devil.

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