sábado, janeiro 15, 2005
o meu barbeiro
Repost de Verão a propósito de um jantar de Inverno:
O meu barbeiro pergunta-me sempre como quero o cabelo. Curto?, diz ele, agora para o Verão? Não, não muito curto, basta acertar as pontas, respondo com cautela. Tudo isto é só para fazer conversa. Responda o que responder, saio de lá sempre com um corte igual. É claro que não arrisco a dizer Sim, muito curto, pois dou demasiada importância às palavras para as dizer trocadas. Mas já pedi curto e saí de lá como hoje: com o cabelo curto.
As conversas também se repetem. Invariavelmente finge surpreender-se com a quantidade dos meus cabelos brancos (já há dez anos que se surpreende), com o facto de eu estar ou já não estar a trabalhar no Alentejo, com o tempo que demoro no trânsito de e para o emprego, etc.
Ir ao barbeiro é, assim, uma ruptura na linearidade do tempo, uma suspensão do decurso da história, um revisitar dos mesmos momentos já vividos.
Como bom português, o meu barbeiro aderiu à febre da bandeirite e colou uma bandeira portuguesa de papel na montra, ao lado de uma caixa vazia de um aparelho qualquer da Panasonic e das embalagens de 4444, um creme vetusto mas muito eficaz contra as borbulhas e irritações cutâneas do pós-barbear. Quando estou virado para o espelho, envolto na bata que me imobiliza na cadeira, vejo um poster de um calendário de parede com uma moçoila abençoada pelo Criador. Pelo espelho vejo mais duas raparigas bem saudáveis, embora encaloradas, pelo menos a julgar pela pouca roupa que envergam, afixadas na parede oposta.
O mais curioso é que, precisamente ao lado de uma destas nossas irmãs, está exposta uma imagem de um Sagrado Coração de Jesus, um daqueles posters que mostra um Jesus sofredor, com o coração chagado com uma coroa de espinhos, e de olhar triste e condoído. Mais dele do que de nós, parece-me. Mais acima, quase escondida pelo armário dos vários utensílios próprios de uma barbearia, está um calendário antigo, sublinhando um tempo que, por ter passado, faz inexoravelmente parte de nós, com a imagem de Nossa Senhora de Fátima a velar por todo aquele espaço. Convivem, assim, nas paredes da barbearia o sagrado e o profano, numa expressão do mais radical catolicismo, do seu carácter universal, onde cabe o espírito e a carne.
É um grande conhecedor da natureza humana, o meu barbeiro.
CC
O meu barbeiro pergunta-me sempre como quero o cabelo. Curto?, diz ele, agora para o Verão? Não, não muito curto, basta acertar as pontas, respondo com cautela. Tudo isto é só para fazer conversa. Responda o que responder, saio de lá sempre com um corte igual. É claro que não arrisco a dizer Sim, muito curto, pois dou demasiada importância às palavras para as dizer trocadas. Mas já pedi curto e saí de lá como hoje: com o cabelo curto.
As conversas também se repetem. Invariavelmente finge surpreender-se com a quantidade dos meus cabelos brancos (já há dez anos que se surpreende), com o facto de eu estar ou já não estar a trabalhar no Alentejo, com o tempo que demoro no trânsito de e para o emprego, etc.
Ir ao barbeiro é, assim, uma ruptura na linearidade do tempo, uma suspensão do decurso da história, um revisitar dos mesmos momentos já vividos.
Como bom português, o meu barbeiro aderiu à febre da bandeirite e colou uma bandeira portuguesa de papel na montra, ao lado de uma caixa vazia de um aparelho qualquer da Panasonic e das embalagens de 4444, um creme vetusto mas muito eficaz contra as borbulhas e irritações cutâneas do pós-barbear. Quando estou virado para o espelho, envolto na bata que me imobiliza na cadeira, vejo um poster de um calendário de parede com uma moçoila abençoada pelo Criador. Pelo espelho vejo mais duas raparigas bem saudáveis, embora encaloradas, pelo menos a julgar pela pouca roupa que envergam, afixadas na parede oposta.
O mais curioso é que, precisamente ao lado de uma destas nossas irmãs, está exposta uma imagem de um Sagrado Coração de Jesus, um daqueles posters que mostra um Jesus sofredor, com o coração chagado com uma coroa de espinhos, e de olhar triste e condoído. Mais dele do que de nós, parece-me. Mais acima, quase escondida pelo armário dos vários utensílios próprios de uma barbearia, está um calendário antigo, sublinhando um tempo que, por ter passado, faz inexoravelmente parte de nós, com a imagem de Nossa Senhora de Fátima a velar por todo aquele espaço. Convivem, assim, nas paredes da barbearia o sagrado e o profano, numa expressão do mais radical catolicismo, do seu carácter universal, onde cabe o espírito e a carne.
É um grande conhecedor da natureza humana, o meu barbeiro.
CC