quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Sobre Fátima, religião e eleições (audaz!)

Esta segunda postou-se no Barnabé um texto sobre Lúcia de Jesus que recordava o percurso desta freira e questionava se se teria utilizado uma criança (inocente) para criar e alimentar todo o "fenómeno" do santuário de Fátima. O equivalente uma presa política da Igreja Católica. Nos comentários muita gente aplaudiu, avançou com as suas próprias teorias da conspiração, reivindicou a verdade e razão. Eu apontei que no meio de tanta argumentação acusatória, faltava dizer que as freiras, nomeadamente as de clausura, passam o dia a fazer duas coisas simples: a rezar e a contemplar. E que isso não me parecia um atentado à liberdade antes pelo contrário.

Houve quem reagisse bem, houve quem reagisse muito mal, houve muita celeuma. O primeiro comentário que me suscita é que atacar a Igreja é fácil. Traz os seus dividendos. Basta bradar: Inquisição, preservativo, SIDA, homossexuais, todos esses soundbytes que dizem "culpada!". Provoca-me talvez o mesmo tipo de reacção cada vez que remotamente se quer falar sobre comunistas e se começa logo a discussão a bradar Estaline. É o debate sujo à partida porque o argumentário não perdoa (nem avança). E de uma assentada mata qualquer hipótese de colocar outras visões.

Tive formação católica, na escola porque frequentei num colégio católico, durante a adolescência porque pertenci a grupos de jovens, curiosamente não da parte dos meus pais cuja a educação rígida e conservadora do Portugal dos anos 50/60 acabou por afastar (e no entanto agora há uma aproximação). Durante esses anos conheci uma Igreja arejada, de gente esclarecida, onde o diálogo e vontade de progredir era muita. Nunca mais voltei a discutir tanto como naquele tempo. Uma associação de homens (com as suas grandezas e misérias) que mais intervém na área social e que é muitas vezes o único garante de humanidade nas situações mais desumanas. Reconheço que há outras realidades dentro desta Igreja que são retrógadas, conservadoras, machistas, ... A realidade é mais complexa do que algumas linhas possam esclarecer mas tenho a maior admiração por aqueles que entregam a sua Vida em prol dos outros. Por missionários, por freiras, por padres. Isto de ser chamado a viver em coerência com o que se acredita arde. Arde muito. Arde tanto que muitas vezes acabamos por sentir-nos hipócritas por encher a boca de tantas intenções e de nem sequer praticar um terço delas. A mim ardeu demais e vi que era pouco católica, no coração e na intenção (e não na aparência), que aquilo que herdei de criança necessitava de uma opção consciente de adulta. E por isso a minha opção consciente é que este não era o meu caminho. Avancei para outros caminhos.

À minha volta muitos dos meus amigos fizeram essa transição com tranquilidade. São católicos praticantes, mais uma vez repito, arejados.

Dessa homilia muito badalada do padre da paróquia de S. João de Brito parecia que aos católicos só restava votar PP. Aqueles que defendiam a Vida (e eram contra a poligamia parece claro). Ainda este fim de semana o Expresso dava voz a um grupo de católicos que mais uma vez punham a tónica na questão do aborto. Como na Irmã Lúcia é a mais fácil ver as coisas só pelo prisma redutor das nossas crenças.

Há outras opiniões, repito mais uma vez, arejadas. Ponham os olhos no magnífico texto do Miguel Marujo no Terra da Alegria. Ainda este domingo falava com a minha irmã (outra que soube abraçar com tranquilidade uma religião que a enquadra na totalidade) e ela repetia semelhantes palavras: "Se Jesus mais do que tudo sempre esteve do lado dos mais desprotegidos...".

Sofia

Comments:
ai, ai minha cara menina...a questão é se a vidinha levada na clausura a rezar e a contemplar não é por escolha própria mas por imposição da igreja, a medo que ela dissesse o que queria mas outros não queriam. Olhe, vá arejar!
 
A questão é chamar vidinha rezar. Ou a questão é deixar comentários anónimos. Ou a questão é acusar que foi uma condição imposta. E já agora o que é que esta freira queria dizer? Acha que aproveitava o tempo das audições com o Papa para passar bilhetinhos a pedir "Socorro!"? Eu não sei, mas você parece-me muito bem informado.
Acredita que alguém pode passar cerca de 80 anos num convento sem vontade? Acha que a mantiveram agriolhada? Suspeita que incluiu tortura no meio?
Arejar gosto de o fazer todos os dias. Um pouco de ar acalma as pessoas.
E já agora o texto do Miguel Marujo? Não gostou? Não lhe suscita comentários? Ou isto não é Igreja também?
 
Querida menina Sofia:
Em primeiro lugar "Sofia" é tão anónimo para mim quanto o meu anonimato. Se não gosta de comentários anónimos exclua-os do seu blog porque é possível fazê-lo. Depois, deixe-me que lhe diga, que há várias maneiras de "obrigar" alguém sem as fantasias idiotas que a menina usou para humorizar a questão. Não creio que se tenham utilizado torturas nem que a irmã tenha sido agrilhoada, mas há grilhões de várias espécies. E sim, estou bem informado ou razoavelmente informado. O suficiente para saber que uma simples criança de aldeia pode ser silenciada sem recurso às parvoíces que referiu. Se areja todos os dias minha menina aconselho-a a durante o arejamento aproveitar para pensar que o mundo não é a preto e branco. Cumprimentos cordiais e anónimos.
 
Caro anónimo, não tentei explicar nem tento se há aqui a condição de vidente ou santa. Limitei-me a apontar que durante o seu percurso também incluiu tomar votos e tomar votos de clausura. E o que isso implicava na prática. Não reduzo a questão a o que aconteceu quando tinha 14 anos, se foi obrigada, porquê. Essa criança cresceu e mais tarde ou mais cedo tomou consciência de onde estava. O que perpassa destas especulações (as que li no Barnabé) é que uma mulher por querer ser freira é uma idiota, uma silenciada, um ser sem vontade ou discernimento.Uma vítima.
O que quis dizer é que essa sim é a visão do preto da Igreja castradora e que não evoluiu do tempo inquisitorial. Tomar votos é uma opção de vida que assume uma entrega na totalidade. Essa entrega não pode ser forçada durante uma vida inteira. Ou não percebe isso?
A parte final do post também quis referir que não há uma Igreja homogénea . Veja lá se isso de adequa à sua visão cinzenta.
(já agora menina Sofia só a Dona Olinda).

Vá passando.
 
Excelente post. E excelente resposta a todos os que reduzem a Igreja a um grupo de fanáticos de preto, submentidos a um Deus cruel e vingador. Infelizmente, há certos mitos que perduram num certo imaginário laico.E isto aplica-se ao senhor anónimo, claro está, que não imagina que se possa escolher voluntariamente uma vida como a da Irmã Lúcia.
 
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