quinta-feira, março 31, 2005

Elemento I - Dor (2)

Ngaga (lê-se Ne-gá-gá) poderia ser um jovem como qualquer outro. Quando o conheci, em Dezembro de 2003, tinha abandonado a Universidade no final do 1º ano (estudava engenharia - não sei qual) e estava desempregado. Até aqui nada de extraordinário.
A não ser o facto de Ngaga ter, à data, 24 ou 25 anos e viver em Yaoundé, nos Camarões. O ordenado mínimo no país rondava os 25.000 francos CFA o que equivaleria a perto de 40€ ao câmbio do mercado negro. O país tinha um desemprego de cerca de 50% e um crescimento populacional explosivo. Ngaga tinha abandonado os estudos porque o pai morrera (já não tinha mãe) e não tinha possibilidade de arranjar emprego, sem formação e num país com tão alta taxa de desemprego, pelo que não poderia pagar os seus estudos. Tinha um irmão, que vivia em França, onde tocava num qualquer grupo que actuava em bares. Ngaga não conseguira visto para se juntar ao irmão. Na prática, Ngaga não tinha futuro.
A última vez que soube dele estava em N'Djamena, onde tinha chegado na esperança de conseguir um visto para entrar na União Europeia. Julgo que a sua ideia era vir para Portugal. Mas pelo que soube estava praticamente sem dinheiro e a possibilidade de conseguir um visto era ... bem ... remota. Pelo tempo que passou, e sem mais notícias, posso assumir que Ngaga não conseguiu o visto. E terá gasto na aventura o pouco que ganhou no stand português numa feira realizada em Yaoundé. Ngaga ganhou, nessa semana, cerca de 70.000 francos CFA. Julgo que foi com esse dinheiro que terá conseguido viajar até N'Djamena.
Ocorrem-me, frequentemente, as conversas tidas naqueles dias com Ngaga. A sua vontade de saír dos Camarões, de vir para a Europa trabalhar no que quer que fosse e, quem sabe, talvez um dia conseguir estudar cá e tirar o seu curso de engenharia. Ngaga tinha esperança. E como é forte a esperança dos desesperados.
Só posso romancear sobre o que entretanto lhe terá acontecido. Talvez a sua esperança o tenha levado a, com outros desesperados, atravessar o Sahara e, depois, a lançar-se na aventura da travessia do Mediterrâneo. Talvez o tenha feito e tenha morrido à vista das costas salvíficas da Europa. Talvez tenha morrido na travessia do deserto. Talvez tenha conseguido chegar a Espanha. Talvez tenha retornado a Yaoundé. Talvez ainda esteja em N'Djamena. Ou talvez tenha morrido de uma qualquer doença de entre a miríade que matam, todos os dias, em África.
Se for vivo, Ngaga terá hoje 26 ou 27 anos. Mas continua a não ter futuro.
AR

Comments:
Podia ter vindo cantar com o irmão, músicas como o "Ngaga da Bicharada".
 
Bom, nessa perspectiva, a maior parte dos nossos avós não teriam tido futuro! Mas nós estamos cá...
 
Enviar um comentário

<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?