segunda-feira, junho 20, 2005

o sal da língua




ROTINA

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.



GREEN GOD

Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.



QUASE NADA

O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.

(Eugénio de Andrade)

Porque são certas as palavras e insubstituíveis os seus significados. Porque é urgente escutar e falar e saber ler sem medo da língua. Porque importa ainda descobrir rosas e rios e manhãs claras, para que não se extinga o lume breve das palavras e do amor. Porque se deve aprender uma gramática de exílio, nas vertentes do silêncio. Porque, para além das mortes, é urgente permanecer.
CC

Comments:
Caro cc,
Porque ainda sinta o sal da língua, porque ainda acredite, porque ainda saiba homenagear... convido-o à leitura de recente comentário que fiz no La Force des Choses. Simplesmente, porque é importante acreditar...
cm
 
Enviar um comentário

<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?