terça-feira, julho 12, 2005

O pincel e a água

Bin Salah sentou-se junto a um pequeno regato, nos jardins da casa do Tempo. A luz dourada invadia todos os espaços, quente e acolhedora. Talvez porque se deixasse embalar pelo canto sereno das gotas de água, não viu ir chegando, do outro lado, um homem magro, calvo, que agitava calmamente um dos braços, segurando o que lhe pareceu ser um enorme pincel.
O homem foi-se aproximando do local onde Bin Salah se encontrava, desenhando no chão estranhos arabescos, absolutamente indecifráveis.
‘Porque está a escrever com água?’, perguntou, incrédulo, Bin Salah. O homem ergueu a cabeça e fixou-o nos olhos. ‘E porque não hei-de escrever com água?’ Porquê, porquê? Porque vai desaparecer. Eu sei, já olhou para trás? Sim, sim, já olhei, pensou Bin Salah, já olhei e não está lá nada, passou tudo. Claro que não, pareceu dizer o homem, enquanto o olhava fixamente, claro que não. Afinal tudo é escrito com água. A sua vida, a minha, tudo, e continuou a rabiscar o chão, sem se importar com os arabescos que desapareciam antes de terminar os parágrafos, até as frases. Tudo volátil, tudo efémero. Não, não, pensou Bin Salah, Clorivedra não é efémera. Só não será, disse-lhe o homem, se for sempre a primeira pincelada. Se cada momento for o primeiro e nunca deixar de o ser. Mas como pode isso ser, e agora tudo lhe parecia dourado, insuportavelmente acolhedor, maldito jardim, que me tolhe o raciocínio, pintar com água não lembrava ao Diabo, até sinto o cheiro da água, não pode ser cada pincelada sempre a primeira. Pode sim, sorriu-lhe o homem com os olhos, claro que pode, basta querer, mas não pode, é e passou, já não é mais. Isso é a água, e a boca do homem sussurrava-lhe as palavras, brisa que volteava em torno de si, cheiro da água que o entontecia até não saber o que dizia nem onde estava, depende de si dar-lhe um tempo ou não.
A imagem de Clorivedra bailou-lhe à frente dos olhos e, quando a afastou, o homem tinha desaparecido.
AR

Comments:
:) Hum... já está pronta para a publicação?
 
Para glorificação da minha preguiça e da falta de ideias, está a anos do fim!
AR
 
Ora, bolas! E eu a ver se ganhava uns tostões (cêntimos!) com a revisão! :(
 
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