terça-feira, outubro 18, 2005
Heart of Darkness
"Hoje é o Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza. Neste dia, vale a pena lembrar as melhores armas de combate à pobreza: os mercados, a globalização, as instituições liberais, a iniciativa privada, o capitalismo e os laços de solidariedade que unem os membros da sociedade civil entre si. E tudo aquilo que tem contribuido para a pobreza: os impostos, a sobre-regulamentação, o centralismo, o proteccionismo e o socialismo."
João Miranda in Blasfémias
Passou esta segunda no Doc Lisboa um documentário do belga Hubert Sauper, o Darwin's Nightmare , todo um case studie sobre a aplicação da globalização, capitalismo e iniciativa privada na Tanzânia. A Tanzânia, uma antiga colónia britânica, fica situada na África Oriental ladeada pelo Uganda, pelo Quénia, por Moçambique e pelo Congo.
O documentário começa por mostrar o negócio florescente da cidade de Mwanza, a comercialização da perca do Nilo, uma espécie exótica introduzida no lago Vitória na década de 50. Trata-se de um animal enorme de onde se extraem filetes de peixe branco e grosso. Reproduz-se rapidamente e é bastante lucrativo. É a globalização em acção: há trabalho para os pescadores, as fábricas de extracção e comercialização dos filetes são os maiores empregadores da zona, o produto tem como alvo o mercado de exportação (Japão e a Europa), conta com apoio do governo central e da Comissão Europeia
O pesadelo começa pela escolha do bicho colonizador. A perca do Nilo é também um predador voraz que já deu cabo do ecossistema do lago (as cerca de 200 espécies nativas já estão praticamente extintas) acrescido do problema da perda de oxigênio na água consequência da poluição e da perda da biodiversidade.
O pesadelo continua à medida que vamos conhecendo como vivem as populações nas margens do lago. Os pescadores, numa espécie de colónias à beira rio, na mais absoluta miséria, sem acesso a cuidados médicos ou condições mínimas de dignidade. O vírus HIV mata cerca de 10 a 15 (pescadores) por semana. Na cidade, encontram-se hordas de meninos de rua, órfãos deixados pela doença (HIV mais uma vez) e pela miséria. Snifam cola para se consolarem. Conhecemos também um grupo prostitutas, único trabalho para as mulheres da zona que queiram sobreviver. Vendem o corpo aos pescadores e aos transportadores do peixe (pilotos e tripulação dos aviões). Sofrem abusos vários. Uma das raparigas entrevistadas é degolada por um piloto durante a realização do documentário.
A última face do pesadelo é o transporte. Monta-cargas ucranianos abastecem a Europa duas vezes ao dia. Para nós trazem cerca de 55 toneladas de filetes, para África, e depois de alguns apertos por parte do realizador, confessam, entre a ajuda humanitária e médica seguem por vezes caixotes de armas e equipamento de guerra que abastecem os conflitos nos países vizinhos. Um comandante de um destes aviões reconheceu ter uma vez transportado 4 tanques para Angola.
Como as larvas que devoram as espinhas que são vendidas à população local (o único que esta pode comprar), vemos que o sistema está, todo ele, podre. A população local não é beneficiada pelo desenvolvimento deste negócio. O futuro é insustentável pela questão ecológica, porque não se consegue romper o ciclo de pobreza, pela doença, porque nós recebemos peixe e eles recebem armas. Uma guarda nocturno que vigia uma dos laboratórios de apoio à indústria pesqueira, munido apenas com um arco e algumas setas para ganhar 1 dólar por dia, diz que prefere a guerra. Que venha a guerra porque sempre se ganha mais.
Admito que parte desta equação passa também pela democratização destes países, e que, em teoria, o livre acesso aos mercados e a troca comercial promovem a riqueza das nações, já dizia Adam Smith. Mas a riqueza criada não está a servir estas populações. O esquema montado promove a miséria, e a miséria, apercebemo-nos, é também ela um negócio. Como a perca do Nilo que acaba com os recursos do lago, a Europa aqui é retratada como o predador destas populações. Bem vêem, poderemos sempre enviar ajuda humanitária no final. Somos fornecedores de mantimentos, de ajuda médica e somos também os fornecedores de armas.
O Papa João Paulo II na encíclica Sollicitudo rei Socialis fala de um mundo submetido a “estruturas de pecado”, ou seja , um conjunto dos factores negativos, que agem em sentido contrário a uma verdadeira consciência do bem comum universal e à exigência de o favorecer, dá a impressão de criar, nas pessoas e nas instituições, um obstáculo difícil de superar. Estas estruturas interferem e atrasam o processo do desenvolvimento dos povos. É um conceito que descreve bem esta situação. Infelizmente trata-se disso e fazemos parte dela. Somos os consumidores.
Sofia
João Miranda in Blasfémias
Passou esta segunda no Doc Lisboa um documentário do belga Hubert Sauper, o Darwin's Nightmare , todo um case studie sobre a aplicação da globalização, capitalismo e iniciativa privada na Tanzânia. A Tanzânia, uma antiga colónia britânica, fica situada na África Oriental ladeada pelo Uganda, pelo Quénia, por Moçambique e pelo Congo.
O documentário começa por mostrar o negócio florescente da cidade de Mwanza, a comercialização da perca do Nilo, uma espécie exótica introduzida no lago Vitória na década de 50. Trata-se de um animal enorme de onde se extraem filetes de peixe branco e grosso. Reproduz-se rapidamente e é bastante lucrativo. É a globalização em acção: há trabalho para os pescadores, as fábricas de extracção e comercialização dos filetes são os maiores empregadores da zona, o produto tem como alvo o mercado de exportação (Japão e a Europa), conta com apoio do governo central e da Comissão Europeia
O pesadelo começa pela escolha do bicho colonizador. A perca do Nilo é também um predador voraz que já deu cabo do ecossistema do lago (as cerca de 200 espécies nativas já estão praticamente extintas) acrescido do problema da perda de oxigênio na água consequência da poluição e da perda da biodiversidade.
O pesadelo continua à medida que vamos conhecendo como vivem as populações nas margens do lago. Os pescadores, numa espécie de colónias à beira rio, na mais absoluta miséria, sem acesso a cuidados médicos ou condições mínimas de dignidade. O vírus HIV mata cerca de 10 a 15 (pescadores) por semana. Na cidade, encontram-se hordas de meninos de rua, órfãos deixados pela doença (HIV mais uma vez) e pela miséria. Snifam cola para se consolarem. Conhecemos também um grupo prostitutas, único trabalho para as mulheres da zona que queiram sobreviver. Vendem o corpo aos pescadores e aos transportadores do peixe (pilotos e tripulação dos aviões). Sofrem abusos vários. Uma das raparigas entrevistadas é degolada por um piloto durante a realização do documentário.
A última face do pesadelo é o transporte. Monta-cargas ucranianos abastecem a Europa duas vezes ao dia. Para nós trazem cerca de 55 toneladas de filetes, para África, e depois de alguns apertos por parte do realizador, confessam, entre a ajuda humanitária e médica seguem por vezes caixotes de armas e equipamento de guerra que abastecem os conflitos nos países vizinhos. Um comandante de um destes aviões reconheceu ter uma vez transportado 4 tanques para Angola.
Como as larvas que devoram as espinhas que são vendidas à população local (o único que esta pode comprar), vemos que o sistema está, todo ele, podre. A população local não é beneficiada pelo desenvolvimento deste negócio. O futuro é insustentável pela questão ecológica, porque não se consegue romper o ciclo de pobreza, pela doença, porque nós recebemos peixe e eles recebem armas. Uma guarda nocturno que vigia uma dos laboratórios de apoio à indústria pesqueira, munido apenas com um arco e algumas setas para ganhar 1 dólar por dia, diz que prefere a guerra. Que venha a guerra porque sempre se ganha mais.
Admito que parte desta equação passa também pela democratização destes países, e que, em teoria, o livre acesso aos mercados e a troca comercial promovem a riqueza das nações, já dizia Adam Smith. Mas a riqueza criada não está a servir estas populações. O esquema montado promove a miséria, e a miséria, apercebemo-nos, é também ela um negócio. Como a perca do Nilo que acaba com os recursos do lago, a Europa aqui é retratada como o predador destas populações. Bem vêem, poderemos sempre enviar ajuda humanitária no final. Somos fornecedores de mantimentos, de ajuda médica e somos também os fornecedores de armas.
O Papa João Paulo II na encíclica Sollicitudo rei Socialis fala de um mundo submetido a “estruturas de pecado”, ou seja , um conjunto dos factores negativos, que agem em sentido contrário a uma verdadeira consciência do bem comum universal e à exigência de o favorecer, dá a impressão de criar, nas pessoas e nas instituições, um obstáculo difícil de superar. Estas estruturas interferem e atrasam o processo do desenvolvimento dos povos. É um conceito que descreve bem esta situação. Infelizmente trata-se disso e fazemos parte dela. Somos os consumidores.
Sofia